Quando a Empresa Aprende com Ela Mesma - Como a Experiência Explícita estruturada com IA redefine o Conhecimento nas empresas


Premissa

Mais de uma década após a publicação do artigo original “Reciclagem da Experiência no processo de treinamento corporativo”, percebo que muitos dos questionamentos e intuições ali lançados permanecem vivos, mas agora exigem uma nova abordagem, à altura das transformações tecnológicas e culturais em curso. 

A emergência da inteligência artificial generativa, a aceleração dos modelos de linguagem (LLMs) e a crescente integração de sistemas automatizados no cotidiano das empresas transformaram radicalmente o modo como a experiência humana é registrada, interpretada e reaproveitada. 

Esta atualização nasce, portanto, da necessidade de revisitar aquele texto à luz dos desafios contemporâneos, incorporando conceitos, metodologias e implicações éticas que emergiram com a presença cada vez mais ativa da IA no campo da aprendizagem corporativa. 

Não se trata apenas de revisar: trata-se de expandir, complexificar e reformular o horizonte do que entendemos como conhecimento organizacional vivo.


Introdução - A Era da Inteligência Artificial e o Valor da Experiência Explícita

 

Vivemos uma era marcada por transformações radicais no modo como as empresas aprendem, decidem e operam. A inteligência artificial (IA), antes restrita aos laboratórios e ficção científica, hoje integra os processos decisórios cotidianos das corporações: desde o atendimento ao cliente por chatbots até algoritmos que recomendam decisões estratégicas com base em dados de mercado. No entanto, por trás da promessa de automatização e predição, há uma questão essencial e muitas vezes negligenciada: o que alimenta esses sistemas? De onde provém o “conhecimento” que a IA processa?

Neste cenário, ganha protagonismo um conceito que há tempos circula nos estudos de gestão do conhecimento, mas que agora assume novo fôlego: a experiência explícita. Trata-se do conjunto de saberes que, outrora confinados à prática subjetiva e tácita dos colaboradores, é transformado em conteúdo estruturado, acessível e reaproveitável. A experiência explícita é, por excelência, o elo entre a inteligência humana vivida e a inteligência artificial aplicada.

 

Da experiência tácita passamos ao capital cognitivo digital

 

Empresas sempre dependeram do conhecimento acumulado em seus quadros, mas frequentemente deixaram que ele se perdesse com a saída de colaboradores ou ficasse confinado a nichos especializados. A passagem da experiência tácita para o formato explícito, seja por meio de documentos, vídeos, fluxogramas, estudos de caso ou checklists operacionais, transforma o saber individual em patrimônio coletivo e replicável.

 

Hoje, com o avanço das tecnologias de processamento de linguagem natural (PLN), como o ChatGPT, e da integração de grandes modelos de linguagem (LLMs) a sistemas corporativos, esse patrimônio ganha novo papel: torna-se insumo qualificado para treinar, refinar e direcionar sistemas de IA corporativa.

 

Por exemplo:

 

  • Um assistente virtual pode consultar bases documentais compostas por experiências explícitas para oferecer suporte técnico em tempo real.
  • oPlataformas de onboarding podem personalizar o aprendizado de novos funcionários com base no histórico de casos resolvidos por colaboradores experientes.
  • Sistemas de IA generativa podem redigir e-mails, propostas, scripts de vendas ou relatórios com base no “estilo” da empresa, aprendido a partir da massa documental organizada.

 

Inteligência Artificial não é mágica: depende da qualidade da experiência. É importante reforçar: a IA não inventa conhecimento. Ela opera por associação, generalização e previsão a partir de padrões existentes. Assim, a eficácia e relevância de suas respostas estão diretamente ligadas à qualidade do conteúdo com o qual foi alimentada. Sem uma base sólida de experiências bem documentadas, contextualizadas, atualizadas e com valor estratégico, a IA corre o risco de repetir erros, reforçar vieses ou fornecer respostas genéricas e descontextualizadas.

Nesse ponto, a “reciclagem da experiência” que antes servia apenas à memória organizacional e à formação interna, passa a ser uma alavanca de inteligência coletiva e algorítmica. Empresas que dominam esse processo não apenas preservam o saber de seus quadros, mas também aceleram sua capacidade de inovar, decidir e adaptar-se a um mundo cada vez mais volátil.

Este artigo propõe, portanto, uma reflexão e um roteiro prático sobre como capturar, organizar e transformar a experiência tácita em experiência explícita, e como essa transformação pode alimentar não apenas o capital humano, mas também o capital digital da empresa. Exploraremos os fundamentos teóricos, as tecnologias disponíveis e as estratégias organizacionais que permitem fazer da experiência um ativo vivo, em constante evolução, servindo tanto à inteligência humana quanto à artificial.

Ao final, esperamos que o leitor compreenda que a IA corporativa não é uma substituição da inteligência humana, mas sim uma extensão poderosa daquilo que já foi vivido, compreendido e explicitado com rigor e criatividade.

 

 

1.0 A Experiência como Conhecimento Organizacional

 

A experiência é, tradicionalmente, um saber de difícil apreensão. Transmitido informalmente, acumulado no cotidiano das relações e da prática profissional, esse saber não consta nos manuais, mas decide processos, orienta condutas e resolve problemas com eficiência silenciosa. É a “inteligência da prática”. Nas organizações, é essa inteligência que diferencia o erro repetido do acerto intuitivo, o improviso oportuno da negligência. Contudo, com a crescente complexidade dos sistemas e a rotatividade no ambiente de trabalho, confiar apenas na memória viva dos colaboradores é um risco estratégico.

 Do saber vivido ao conhecimento operável com o apoio da inteligência artificial

 

Nesse ponto, emerge a necessidade de transformar experiência tácita em experiência explícita e mais recentemente, de alimentar com essa experiência os sistemas de inteligência artificial corporativa, capazes de aprender com dados históricos e sugerir soluções em tempo real.

 

1.1 A transformação da experiência: do saber tácito ao conhecimento explícito

 

Em qualquer organização, a experiência é o tecido invisível que sustenta decisões, orienta condutas e garante a continuidade dos processos. Contudo, ela se apresenta, inicialmente, sob uma forma tácita, subjetiva, implícita e muitas vezes inacessível a quem não a vive diretamente. Esse saber está enraizado nas práticas cotidianas, nos hábitos e nos gestos quase automáticos do colaborador experiente. É aprendido pela convivência, não por instrução formal. Por isso, é difícil de ser replicado, formalizado ou transferido entre indivíduos.

A experiência tácita, como destaca Michael Polanyi (1966), é do tipo "sabemos mais do que podemos dizer". Ela inclui perceções, intuições, sensibilidades e estratégias formadas ao longo do tempo, mas raramente objeto de reflexão ou documentação. Nas empresas, isso se traduz, por exemplo, na habilidade de um técnico de “sentir” que a máquina está prestes a falhar apenas pelo som que emite, ou na forma como uma líder sênior consegue “ler o ambiente” de uma reunião e antecipar resistências. Esses saberes não estão nos manuais e, por isso, frequentemente se perdem com a saída de colaboradores chave.

Transformar essa experiência em conhecimento explícito é um desafio, mas também uma oportunidade estratégica. A experiência explícita é aquela que foi decodificada, formalizada e compartilhada. Ela se materializa em procedimentos operacionais, fluxogramas, vídeos tutoriais, relatos de casos, artigos internos e bancos de perguntas e respostas. Para que isso ocorra, é preciso mediação: alguém que escute, interprete, registre e traduza a prática em linguagem transmissível.

Esse processo de explicitação é tratado por Nonaka e Takeuchi (1997) como um dos momentos centrais da criação do conhecimento organizacional. Para os autores, a dinâmica entre conhecimento tácito e explícito se dá por meio de quatro processos interligados: socialização, externalização, combinação e internalização, o modelo SECI. No caso da externalização, a experiência individual é expressa em palavras, imagens e símbolos, permitindo que outros a acessem e a incorporem.

No entanto, a passagem do tácito ao explícito não é neutra nem automática. Ela implica perda de nuances, riscos de reducionismo e desafios de contextualização. O saber tácito é adaptativo e sensível ao contexto; já o explícito tende à generalização. Por isso, ao explicitar, é necessário preservar o enraizamento prático e subjetivo daquele saber, garantindo que ele permaneça vivo por meio da constante atualização e retroalimentação com novas experiências (DAVENPORT; PRUSAK, 1998).

É nesse ponto que a inteligência artificial se torna aliada indispensável: sistemas de transcrição automática, análise semântica de textos e agrupamento temático por similaridade, entre outros recursos, são formas eficazes de auxiliar na transposição do implícito para o explícito. Tais ferramentas não substituem a escuta e a interpretação humanas, mas potencializam sua capacidade de registrar, classificar e distribuir o saber com maior agilidade e precisão.

Além disso, é crucial ressaltar que a IA só pode operar sobre o explícito. O que não está documentado, registrado ou mapeado não existe para o algoritmo. Portanto, o investimento em tornar a experiência explícita não é apenas uma medida de preservação da memória organizacional, mas um pré-requisito técnico para que a IA possa aprender, prever, recomendar e decidir com base na inteligência acumulada da organização.

A seguir, resumimos as principais diferenças entre os dois tipos de experiência e como a inteligência artificial se insere neste processo como beneficiária e facilitadora.


1.2 A Inteligência Artificial como beneficiária da experiência explícita

 

Os modelos de IA atuais, como assistentes corporativos, sistemas de recomendação e LLMs, precisam de bases de conhecimento para operar com contexto.

 

Mas o que são Modelos de Linguagem de Larga Escala (LLMs)?

 

Modelos de linguagem de larga escala (LLMs, do inglês Large Language Models) são sistemas de inteligência artificial treinados para compreender, gerar e manipular linguagem humana. Baseiam-se em redes neurais profundas, especialmente nas chamadas arquiteturas de transformers (Vaswani et al., 2017), e são treinados com imensas quantidades de dados textuais, como livros, artigos, websites, diálogos e documentos técnicos.

 

Esses modelos aprendem estatisticamente os padrões e relações entre palavras, frases e conceitos, permitindo-lhes prever a próxima palavra em uma sequência, responder perguntas, redigir textos, resumir conteúdos, traduzir idiomas, interpretar comandos e até dialogar com coerência e contexto.

Apesar de não “entenderem” linguagem como humanos, ou seja, não possuem intencionalidade nem consciência, os LLMs se tornaram altamente eficazes na simulação da linguagem natural, permitindo sua aplicação em tarefas complexas no ambiente corporativo, educacional e técnico.

 

Principais exemplos:

 

  • GPT (Generative Pre-trained Transformer): desenvolvido pela OpenAI, é um modelo autoregressivo que gera texto palavra por palavra, com base em grandes volumes de dados pré-treinados. Modelos como o ChatGPT pertencem a essa família. Sua capacidade de gerar linguagem fluida e contextual faz com que seja amplamente usado em atendimento automatizado, criação de conteúdo, análise de sentimentos e apoio à tomada de decisão.
  • BERT (Bidirectional Encoder Representations from Transformers): criado pelo Google, é um modelo bidirecional, o que significa que considera o contexto à esquerda e à direita de uma palavra para interpretá-la. É mais voltado para compreensão de linguagem (e não geração), sendo muito útil em motores de busca, sistemas de recomendação e análise de textos curtos.
  • LLaMA (Large Language Model Meta AI): desenvolvido pela Meta (Facebook), é uma alternativa aberta e eficiente em termos computacionais, com foco na pesquisa e no uso personalizado. Empresas que preferem hospedar seus próprios modelos podem treinar variantes do LLaMA com dados internos, garantindo mais controle sobre segurança e privacidade.

 

Esses modelos representam uma revolução na forma como lidamos com a linguagem em sistemas computacionais. Mas sua eficácia em contextos corporativos depende da adaptação aos dados específicos da organização, como políticas internas, vocabulário técnico, fluxos operacionais e cultura organizacional. Sem essa personalização, sua aplicação tende a ser genérica, e, por vezes, irrelevante ou imprecisa.

Se consideramos que os modelos de IA atuais precisam de bases de conhecimento para operar com contexto é importante salientar que quanto mais essas bases forem enriquecidas com experiências organizacionais reais, mais úteis se tornam suas respostas. 

Alguns exemplos:

  • Educação corporativa: assistentes de aprendizado treinados com históricos de dúvidas reais ajudam os novos colaboradores a entender práticas internas com mais rapidez.
  • Customer Success: sistemas de IA que acessam cases anteriores de resolução de problemas oferecem respostas mais eficazes aos atendentes e clientes.
  • Saúde corporativa: algoritmos sugerem protocolos de cuidado com base em padrões aprendidos com experiências clínicas documentadas.

 

A inteligência artificial (IA) ocupa hoje uma posição central nos fluxos operacionais e estratégicos das organizações. De sistemas de recomendação a algoritmos preditivos, passando por assistentes conversacionais e motores de busca corporativos, sua aplicação já transcende tarefas repetitivas e começa a tocar decisões complexas. Entretanto, um ponto crucial precisa ser constantemente lembrado: a IA não possui conhecimento próprio. Ela só opera com base no conteúdo com o qual é treinada.

Nesse sentido, a qualidade, a relevância e a estruturação da experiência explícita são determinantes para o desempenho de sistemas inteligentes. Um algoritmo de machine learning, por exemplo, só poderá prever tendências de comportamento de clientes se tiver sido alimentado com dados históricos consistentes e rotulados; um assistente virtual interno só será útil se tiver acesso a bases de conhecimento ricas em conteúdos organizacionais contextualizados, e não apenas a normativas desatualizadas ou manuais genéricos.

Como afirmam Russell e Norvig (2020), a IA depende de entradas informacionais claras, sistematizadas e semanticamente consistentes para operar com eficiência. A performance da IA, portanto, é reflexo da qualidade do conhecimento explícito que lhe foi oferecido, seja na forma de documentos, bases estruturadas, repositórios de perguntas frequentes, ou registros históricos de decisões bem-sucedidas.

Além disso, como citado acima, os grandes modelos de linguagem (LLMs), como o GPT, BERT ou LLaMA, não aprendem de modo semelhante ao humano. Eles não “entendem” no sentido empático ou vivencial, mas reproduzem padrões linguísticos estatísticos com base em corpora[1] massivos. Sua utilidade em contextos corporativos, portanto, só se realiza plenamente quando são customizados com dados e experiências internas. Isso inclui relatórios técnicos, atas de reuniões, fluxos de processos, respostas a clientes, entre outros. Quando alimentados com essa experiência explícita, os modelos se tornam mais precisos, pertinentes e úteis às rotinas específicas da empresa (CHALMERS; MACGREGOR, 2023).

Dessa forma, a IA se apresenta como beneficiária direta do esforço organizacional de tornar o saber explícito. O investimento em transformar experiências em conteúdos documentados, estruturados e acessíveis não é apenas um ganho de memória institucional, mas também um ato fundacional da própria inteligência artificial aplicada ao negócio.

Empresas que negligenciam esse processo correm o risco de adotar IA genérica, que opera com pouco contexto, reforça vieses e oferece respostas imprecisas. Em contraste, aquelas que investem em bases internas de experiência explícita habilitam a IA a ser uma parceira estratégica, pois a enraízam na realidade viva da organização.

 

 

1.3 A IA como facilitadora da coleta da experiência

 

Se a inteligência artificial depende da experiência explícita para operar com relevância, é igualmente verdade que a própria IA pode ser empregada como instrumento para facilitar, acelerar e qualificar a transformação da experiência tácita em explícita. Essa dupla função, ser ao mesmo tempo beneficiária e facilitadora, é um dos aspetos mais estratégicos da IA nos sistemas de conhecimento organizacional contemporâneos.

Historicamente, o processo de explicitação da experiência dependia de ações manuais: entrevistas com especialistas, transcrições humanas, elaboração de documentos, e curadoria feita por analistas de conhecimento. Esses métodos, embora ricos, eram também morosos, parciais e difíceis de escalar. Muitos saberes se perdiam simplesmente por falta de tempo, estrutura ou cultura organizacional para registrá-los.

Com o avanço das tecnologias de processamento de linguagem natural (PLN), reconhecimento de voz, resumos automáticos, classificação semântica e modelos generativos de texto, a IA passou a oferecer mecanismos automáticos ou semiautomáticos de coleta, registro e organização da experiência vivida nas empresas (MANNING; RAGHAVAN; SCHÜTZE, 2008). 

 

A seguir, alguns exemplos concretos:

 

  • Transcrição automática de reuniões: ferramentas como Whisper (OpenAI), Otter.ai ou Microsoft Teams permitem transformar áudio em texto com alta acurácia. Integradas a ferramentas de resumo, podem extrair decisões, pendências e boas práticas a partir de interações reais.
  • Agrupamento temático e tagging semântico: algoritmos de IA podem analisar grandes volumes de documentos e e-mails, organizando-os por temas, projetos ou palavras-chave, tornando possível identificar padrões de conhecimento dispersos.
  • Extração de insights em tempo real: assistentes corporativos podem “ouvir” interações com clientes, fornecedores ou equipes internas, e sugerir automaticamente conteúdos que devem ser formalizados e integrados às bases de conhecimento.
  • Coautoria e redação assistida: sistemas como o ChatGPT ou o Notion AI permitem que especialistas transformem seu saber prático em documentos estruturados, roteiros de treinamento, manuais técnicos ou FAQs com o apoio de modelos generativos.

 

Esses exemplos apontam para uma transformação fundamental: a coleta de conhecimento deixa de ser exclusivamente uma tarefa humana e passa a ser um processo híbrido, no qual a máquina colabora para amplificar a capacidade de registrar e transformar a experiência.

Contudo, é necessário cuidado. Como enfatiza Floridi (2019), a IA opera a partir de padrões já existentes, e tende a reforçar tendências dominantes. Por isso, o papel humano permanece indispensável: para decidir o que vale ser registrado, interpretar contextos, verificar vieses e atribuir valor à experiência. A IA pode facilitar o gesto de escuta e de tradução do saber, mas não substitui o julgamento crítico sobre o que é essencial.

Ao utilizar IA na coleta da experiência, as organizações ganham escala, velocidade e abrangência, mas devem manter como centro de sua estratégia o diálogo entre a inteligência vivida e a inteligência calculada. Só assim será possível construir uma memória organizacional viva, acessível e generativa.

 

 

1.4 Casos por setor

 

Em diversas áreas da atividade corporativa, a experiência prática sempre foi um diferencial, porém muitas vezes invisível, não sistematizado e difícil de ser transferido. Técnicos, vendedores, médicos, gestores e educadores constroem diariamente soluções que não constam em manuais, mas que sustentam o funcionamento da organização. Tradicionalmente, esse saber era transmitido pela convivência, pelo exemplo ou pela repetição informal. Com a saída de pessoas-chave, esse conhecimento frequentemente se perdia.

A boa notícia é que, com o avanço das ferramentas de inteligência artificial e da cultura digital, tornou-se possível criar mecanismos simples, eficazes e humanamente engajantes para transformar essa experiência tácita em experiência explícita reutilizável.

Um dos caminhos mais eficazes para transformar a experiência tácita em conhecimento explícito, especialmente com o apoio da IA, é envolver diretamente os profissionais experientes na documentação daquilo que fazem de melhor. Em vez de depender exclusivamente de entrevistas formais ou redatores externos, as organizações podem incentivar especialistas de cada setor a gravar vídeos curtos, espontâneos ou roteirizados, demonstrando boas práticas, decisões difíceis, atalhos operacionais, modos de lidar com imprevistos e interpretações contextuais que só a experiência ensina.

Esse formato é acessível, direto e engajador. Ao invés de exigir que o especialista “escreva um manual”, basta que ele compartilhe sua prática real com suas próprias palavras e gestos. Essa prática, por si só, já é um passo valioso na externalização da experiência (NONAKA; TAKEUCHI, 1997).

A partir daí, a inteligência artificial pode ser acionada para elevar o potencial desse conteúdo bruto. As etapas incluem:

 

  • Transcrição e sumarização automática (com ferramentas como Whisper ou Amazon Transcribe);
  • Identificação de temas, conceitos e padrões recorrentes (via modelos de linguagem como BERT ou GPT);
  • Organização dos vídeos em trilhas por competência, área ou processo;
  • Sugestão de tópicos complementares ausentes, com base em análise semântica;
  • Geração de textos auxiliares (ex: instruções, FAQs, simulados, resumos) com base no vídeo;
  • Avaliação da consistência técnica e da aplicabilidade para incorporação ao sistema de IA da empresa.

 

Esse ciclo transforma um relato individual em conteúdo instrucional de alta relevância, passível de ser indexado em bases de conhecimento, usado em onboarding, integrado a plataformas de aprendizagem (LMS/LXP), e ainda, servir de corpus para treinar modelos internos de IA.

 

A seguir, ilustramos como essa estratégia se aplica a diferentes setores.

 

Setor: Saúde corporativa

  • Antes: protocolos de atendimento repassados oralmente, grande dependência de profissionais sêniores; escassez de material contextualizado para formação contínua.
  • Boas práticas em vídeo: enfermeiras e médicos experientes gravam relatos sobre como enfrentaram situações-limite (ex.: pacientes agressivos, falhas em sistemas, escassez de recursos).
  • Ação da IA: transcreve e organiza os vídeos por tipo de caso, identifica decisões implícitas, converte relatos em materiais de formação e insumo para algoritmos de suporte clínico.
  • Resultado: disseminação de condutas seguras, alinhamento técnico e construção de memória clínica institucional.

Setor: Varejo

  • Antes: vendedores experientes sabiam "de ouvido" o que funcionava, e novos funcionários aprendiam pela observação ou tentativa e erro.
  • Boas práticas em vídeo: profissionais compartilham estratégias eficazes para abordagem de clientes, negociação, contorno de objeções e fidelização.
  • Ação da IA: estrutura os relatos em padrões de linguagem e comportamento, transforma em scripts de vendas adaptativos e materiais de onboarding personalizados.
  • Resultado: replicação das boas práticas, aceleração do aprendizado e IA comercial mais afinada com a realidade da operação.

 

Setor: Indústria

  • Antes: ajustes de máquinas e soluções de manutenção passavam informalmente de "mestre" para "aprendiz", com alto risco de perda do saber prático.
  • Boas práticas em vídeo: técnicos registram como detectam falhas precoces, otimizam processos e operam com segurança mesmo em situações atípicas.
  • Ação da IA: interpreta os vídeos, extrai instruções e alertas, integra ao sistema de suporte técnico e treinamento, e retroalimenta algoritmos de manutenção preditiva.
  • Resultado: aumento da autonomia técnica, prevenção de falhas e formação prática baseada em casos reais.

 

Setor: Educação corporativa

  • Antes: cursos genéricos e descolados da cultura da empresa; dificuldade em engajar lideranças como formadores internos.
  • Boas práticas em vídeo: líderes e especialistas compartilham como adaptaram metodologias de gestão, aprendizagem ou projetos à realidade interna.
  • Ação da IA: organiza os vídeos em trilhas por competência, resume conteúdos, identifica lacunas, e personaliza trilhas formativas com base nos perfis dos aprendizes.
  • Resultado: criação de uma universidade corporativa viva, baseada no saber dos próprios quadros e capaz de escalar conhecimento situado com precisão.

 

Esse modelo transforma a voz do especialista em conteúdo estruturado, preservando o carácter humano e contextual da experiência, mas ampliando seu alcance e permanência. A inteligência artificial não substitui a prática vivida, mas atua como catalisadora da sua tradução, expansão e integração ao sistema organizacional. O resultado é uma empresa que aprende com o que faz, compartilha o que sabe e se torna cada vez mais capaz de decidir com base em sua própria inteligência coletiva.

 

1.5 O caso da Telefónica Vivo - Instrutubers

Entre a valorização da experiência e a formalização estratégica do saber.

Programas como o Instrutubers da Vivo surgem como exemplos paradigmáticos de políticas organizacionais voltadas à valorização e à formalização da experiência cotidiana. Ao convidar colaboradores experientes a gravar vídeos com linguagem acessível, baseados em suas práticas reais, a Telefônica Vivo opera simultaneamente em duas frentes fundamentais:

 

  1. Reconhecimento simbólico do saber prático interno, ao transformar técnicos, consultores e instrutores em autores e protagonistas da aprendizagem organizacional;
  2. Formalização didática do conteúdo informal, ao transformar aquilo que circulava como "dica", "macete" ou "intuição" em conteúdo audiovisual reutilizável, replicável e escalável.

 

Essa prática corresponde exatamente ao que desenvolvemos ao longo deste artigo como o movimento de externalização e estruturação da experiência. Ainda que a aplicação direta de IA não seja explicitada no caso da Vivo, o modelo é totalmente compatível com a lógica de inteligência organizacional aumentada: os vídeos gravados pelos instrutubers são insumos de alto valor para sistemas de IA que operem por compreensão semântica, personalização de trilhas ou formação de assistentes corporativos.

Mais do que uma prática isolada de inovação em T&D, o Instrutubers representa um exemplo de institucionalização da cultura da explicitação da experiência, ou, como podemos definir aqui, de formação da experiência explícita, uma etapa essencial do ciclo SECI (Nonaka e Takeuchi, 1997), mas que raramente é estimulada de forma criativa e estruturada nas empresas.

O que a Vivo faz com esse programa é oferecer um canal legítimo, institucionalizado e tecnicamente suportado para que o saber vivido se torne saber formalizado, contribuindo para uma cultura de aprendizagem entre pares, de protagonismo formativo e de preservação do conhecimento estratégico. Trata-se de um claro gesto de mediação entre:

 

o   a prática viva

o   a autoria do colaborador

o   a documentação didática

o   o reuso educacional.

 

Ao ser reconhecido e premiado, o programa também revela o valor estratégico da formalização da experiência não apenas como ferramenta de treinamento, mas como capital cultural da empresa. E se a formalização já representa um avanço fundamental, o próximo passo natural, como defendemos neste artigo, é sua integração com sistemas de inteligência artificial que permitam:

 

o   ampliar o alcance desses conteúdos;

o   conectá-los automaticamente a trilhas formativas personalizadas;

o   retroalimentar assistentes virtuais internos com base na linguagem e experiência da própria organização;

o   e ativar mecanismos de curadoria inteligente e atualização contínua.

 

Dessa forma, o Instrutubers da Vivo pode ser lido como um caso aplicado que confirma a relevância do modelo proposto neste artigo, e ao mesmo tempo, um ponto de partida concreto para a evolução de práticas baseadas em experiência explícita estruturada com suporte de IA.

 

1.6 O ciclo virtuoso: humano, explícito, digital, inteligente

 

A proposta deste modelo é clara:

 

1.     Extrair saberes tácitos do cotidiano com auxílio de IA;

2.     Transformar em conteúdos explícitos, relevantes e acessíveis;

3.     Treinar sistemas de IA com essa base, tornando-os mais pertinentes;

4.     Aplicar a IA nos fluxos de trabalho, acelerando decisões e formação;

5.     Retroalimentar o sistema com novas experiências geradas.

 

Esse ciclo articula o humano e o artificial em uma dinâmica produtiva e contínua. A organização que o domina adquire uma nova vantagem: torna-se capaz de aprender com mais velocidade do que o ritmo das mudanças externas.

A transformação da experiência em conhecimento organizacional não é apenas um exercício técnico de gestão de conteúdos, ela representa, fundamentalmente, uma nova ecologia cognitiva das empresas. Trata-se de estabelecer um ciclo virtuoso no qual o saber produzido no cotidiano, frequentemente negligenciado, ganha valor estratégico e passa a alimentar tanto os processos humanos quanto os sistemas digitais inteligentes.

Esse ciclo começa quando a experiência tácita de indivíduos e equipes é reconhecida como fonte legítima de conhecimento. Esse reconhecimento, por si só, já é um gesto cultural relevante: rompe com a ideia de que apenas aquilo que está formalizado ou institucionalizado é válido. A partir daí, por meio de estratégias de registro ativo (vídeos, relatos, observações), essa experiência se torna explícita, codificável, compartilhável e, portanto, transmissível a novos colaboradores, reaproveitável em contextos futuros e, acima de tudo, computável por sistemas de inteligência artificial.

Nesse ponto, a IA entra não como substituta do humano, mas como mediação e amplificação. Ela permite capturar, organizar, refinar, classificar e até transformar esses registros em produtos operacionais: scripts, manuais, tutoriais, respostas automatizadas, dashboards preditivos, fluxos inteligentes. 


O saber que antes morava apenas na cabeça dos mais experientes se transforma em infraestrutura de aprendizagem contínua e de tomada de decisão orientada por dados. 




O ciclo se fecha, e se renova, quando os conteúdos produzidos com base nessa experiência são aplicados, testados, retroalimentados e aprimorados no próprio cotidiano de trabalho. Cada nova ação gera novos dados, cada novo uso retroalimenta o sistema, gerando um organismo organizacional que aprende com o que faz, ensina o que aprende e decide com o que constrói.

 

Esse modelo é essencialmente espiral e não linear, como propuseram Nonaka e Takeuchi (1997), mas agora com uma dimensão tecnológica que acelera, amplia e preserva esse movimento. 

“As empresas que melhor integram experiência, formalização e inteligência artificial não serão apenas mais eficientes, serão mais sábias.

 

A organização que adota essa dinâmica não apenas evita a perda do saber, ela se converte em um sistema vivo de inteligência coletiva aumentada, no qual o valor não está apenas no que se sabe, mas na capacidade contínua de transformar saber em ação e ação em novo saber.


2.0 O Ciclo SECI e a Inteligência Artificial

Articulando saberes humanos e sistemas inteligentes na criação de conhecimento organizacional.

A criação de conhecimento nas organizações não é um ato isolado, mas um processo contínuo e dinâmico de transformação da experiência em aprendizado compartilhado. Entre os diversos modelos propostos para entender esse fenômeno, o mais influente é, sem dúvida, o modelo SECI (Socialization, Externalization, Combination, Internalization), desenvolvido por Ikujiro Nonaka e Hirotaka Takeuchi no contexto da gestão do conhecimento nas empresas japonesas (NONAKA; TAKEUCHI, 1997).

O modelo SECI propõe que o conhecimento organizacional nasce e se desenvolve a partir de uma espiral de interações entre conhecimento tácito e explícito, mediada por contextos colaborativos e culturais propícios. Em tempos recentes, esse modelo ganhou nova relevância, pois a inteligência artificial pode participar ativamente de cada uma das quatro fases, seja como facilitadora da conversão do saber, seja como beneficiária dos conteúdos gerados.

A seguir, examinamos cada fase do ciclo SECI, articulando fundamentos teóricos, práticas organizacionais e possibilidades de uso da IA.

 

2.1 Socialização: compartilhamento de experiências tácitas

 

A socialização é o ponto de partida do ciclo SECI e refere-se à transferência de conhecimento tácito entre indivíduos, geralmente por meio da observação, imitação, convivência ou diálogo experiencial. Aqui, o conhecimento ainda não foi verbalizado ou sistematizado, ele circula informalmente, por meio de gestos, atitudes e experiências compartilhadas.

 

Aplicação prática:

  • Encontros presenciais, rodas de conversa, shadowing, mentoring e vivências.
  • Exemplos como “duplas de campo”, “diário de bordo coletivo”, ou “rodas de aprendizados após crises”.

Potencial da IA:

Embora a IA não substitua a experiência direta, pode facilitar a captura de interações sociais para posterior processamento:

 

  • Gravação e transcrição automática de conversas e reuniões (ex: Otter.ai, Microsoft Copilot).
  • Detecção de padrões recorrentes em interações de equipe por análise de texto e sentimento.
  • Mapeamento de redes de conhecimento tácito (por quem conversa com quem e sobre o quê) com uso de algoritmos de análise de rede.

 

A IA, portanto, ajuda a preservar e tornar acessível a memória relacional da organização, criando pontes entre o vivido e o registrado.

 

 

2.2 Externalização: transformar experiência em linguagem compartilhada

 

A externalização é a fase mais crítica da criação de conhecimento, pois é quando o saber tácito se torna explícito, codificado e compartilhável. Segundo Nonaka e Takeuchi, trata-se de um processo de articulação, muitas vezes ancorado em metáforas, narrativas e exemplos concretos.

Aplicação prática:

  • Produção de manuais, vídeos, artigos, fluxogramas e mapas mentais.
  • Registro de boas práticas pelos próprios especialistas (como discutido no Capítulo 3.4).

Potencial da IA:

Aqui, a IA atua como amplificadora da capacidade de externalização, ao oferecer ferramentas que reduzem a barreira técnica e operacional da formalização:

  • Modelos de linguagem como ChatGPT ou Claude ajudam especialistas a organizar seus relatos em estruturas coerentes e bem redigidas.
  • Ferramentas de resumo automático extraem os principais pontos de longas falas ou textos.
  • Sistemas de tagueamento semântico organizam os conteúdos de forma inteligente, facilitando futuras consultas.

 

A IA permite, portanto, democratizar a autoria e reduzir o esforço cognitivo necessário para que um especialista compartilhe o que sabe.

 

2.3 Combinação: reorganização e cruzamento de saberes explícitos

Na fase de combinação, diferentes pedaços de conhecimento explícito são integrados, reorganizados, contextualizados e cruzados, formando novas estruturas de sentido. Trata-se do domínio da curadoria, da sistematização e da engenharia de conteúdo.

Aplicação prática:

  • Integração de documentos, base de dados, e-learning, FAQs e conteúdos de treinamentos.
  • Elaboração de dashboards, relatórios estratégicos e modelos preditivos.

 

Potencial da IA:

A inteligência artificial atua aqui como sistema nervoso central do conhecimento explícito:

  • Ferramentas de busca semântica e indexação inteligente conectam conteúdos que antes estavam dispersos.
  • Modelos de aprendizado supervisionado extraem padrões e constroem inferências sobre os dados.
  • Sistemas de recomendação de conteúdo (como os embutidos em plataformas LXP) sugerem conexões inesperadas e relevantes.

 

Além disso, empresas que desenvolvem LLMs internos podem alimentar esses modelos com sua base de conhecimento organizada, criando IA personalizada e capaz de operar sobre seu próprio patrimônio experiencial.

 

 

2.4 Internalização: incorporação prática do conhecimento

 

A última fase do ciclo SECI é a internalização, quando o conhecimento explícito é reinterpretado pelos indivíduos e transformado novamente em conhecimento tácito incorporado à prática. O ciclo se completa quando aquilo que foi aprendido se traduz em ação competente, criando novas experiências.

Aplicação prática:

  • Aplicação do que foi aprendido em treinamentos no contexto real de trabalho.
  • Simulações, estudos de caso, role playing, feedbacks situacionais.

Potencial da IA:

  • IA generativa pode criar simulações realistas baseadas em cenários internos.
  • Sistemas de tutoria inteligente adaptam conteúdos à maturidade do colaborador.
  • Feedbacks personalizados com base em comportamento de navegação e desempenho (learning analytics).

 

A IA, portanto, reforça o retorno do conhecimento à prática viva, criando ciclos de aprendizado mais rápidos, adaptativos e personalizados.

 

 

2.5 O ciclo SECI aumentado pela IA

O ciclo SECI representa uma matriz teórico-prática poderosa para pensar a criação de conhecimento organizacional. Ao integrarmos a inteligência artificial nesse modelo, ele ganha velocidade, escala, personalização e continuidade. A IA não substitui os sujeitos do saber, mas atua como instrumento técnico e simbólico de mediação entre o vivido e o formalizado, entre o saber e o decidir, entre o dado e a ação.

Em um mundo onde a única constante é a mudança, a capacidade de transformar experiência em conhecimento e conhecimento em inteligência organizacional viva passa a ser a competência fundamental. O ciclo SECI, ampliado pela IA, torna-se um mapa ético-tecnológico para esse desafio.

 

3.0 Desafios e Condições para a Sustentabilidade do Modelo

 

Entre cultura, técnica e ética: o que sustenta (ou sabota) a inteligência organizacional baseada na experiência?

 

A transformação da experiência em conhecimento estruturado, potencializada por inteligência artificial, oferece às organizações uma oportunidade ímpar de ampliar sua capacidade de aprender, decidir e inovar. Contudo, essa mesma operação exige condições de sustentação que não são apenas tecnológicas, mas também culturais, simbólicas, políticas e éticas.

Sem tais condições, o modelo não se sustenta, ou pior, converte-se em uma forma de captura da experiência sem reconhecimento, em extração de valor sem contrapartida simbólica, em automação descontextualizada que esvazia o sentido da prática. Neste capítulo, analisamos essas tensões e sugerimos critérios para que esse modelo seja adotado de forma duradoura, justa e inteligente.

 

 

3.1 Cultura: o saber como valor compartilhado

O primeiro desafio é cultural. A formalização da experiência só ocorre quando há reconhecimento institucional de que o saber não está apenas nos manuais, mas nas pessoas. Isso exige:

 

  • Uma cultura de confiança e colaboração, onde compartilhar não significa se expor ou perder poder, mas contribuir.
  • Um ambiente simbólico que valorize o saber prático e promova o protagonismo dos profissionais como autores de conhecimento.
  • Uma liderança que escute, incentive e dê visibilidade às contribuições vindas da base, e não apenas da gestão.

 

Sem isso, qualquer iniciativa técnica (como gravação de vídeos, criação de base de dados ou automação com IA) tende ao fracasso ou à obsolescência.

 

3.2 Técnica: infraestrutura, interoperabilidade e curadoria

O segundo desafio é técnico. Transformar experiência em conhecimento explícito e organizá-lo com apoio da IA exige:

  • Plataformas compatíveis com múltiplos formatos (vídeo, texto, áudio) e com recursos de processamento linguístico avançado.
  • Ferramentas de curadoria automática que ajudem a classificar, contextualizar e manter atualizados os conteúdos.
  • Capacitação técnica mínima para que colaboradores consigam gravar, editar e publicar conteúdos sem dependência externa.
  • Interoperabilidade com sistemas já existentes, como LMS, intranets, CRMs, ERPs ou assistentes corporativos.

 

É preciso lembrar que sem curadoria, até a IA se perde, a escalabilidade do conhecimento só é possível com estruturas organizadas.

 

 

3.3 Ética: reconhecimento, consentimento e uso justo da experiência

O terceiro, e talvez mais crítico, desafio é ético. A coleta e o uso da experiência individual e coletiva, especialmente quando mediada por IA, levanta questões de autoria, consentimento, reconhecimento e finalidade. 

 

Vejamos os principais pontos de tensão:

 

Quem é o dono da experiência formalizada?

Quando um colaborador grava um vídeo, compartilha um procedimento ou redige um relato de boas práticas, ele está formalizando parte de sua subjetividade, de sua história, de sua prática única. Se esse conteúdo é incorporado a uma base institucional e usado para formar outros ou alimentar sistemas automatizados, qual é a contrapartida simbólica e material desse gesto?

 

A organização precisa responder:

 

  • Quem assina esse conteúdo?
  • Como essa autoria é preservada ou reconhecida?
  • Há mecanismos de recompensa, reconhecimento ou progressão baseados na contribuição ao conhecimento comum?

 

Consentimento e uso secundário dos dados

A experiência formalizada pode ser utilizada para finalidades distintas das originalmente previstas. Um relato gravado para fins de treinamento pode, no futuro, ser processado por IA e usado como base para decisões automatizadas, scripts de chatbot, análise de desempenho ou desenvolvimento de produtos.

 

 

Isso exige políticas claras de:

  • Consentimento informado, especialmente em contextos onde há simetria desigual de poder.
  • Finalidade restrita: o conteúdo deve ser usado apenas para os fins explicitamente aceitos por quem o produziu.
  • Governança algorítmica, com supervisão humana sobre como os dados da experiência são processados por IA.

 

Privacidade e sensibilidade do conteúdo

Muitos saberes tácitos envolvem interpretações subjetivas, situações delicadas, julgamentos contextuais e aspetos relacionais que não devem ser desnudados ou expostos sem cuidado. A conversão cega do implícito em explícito, sem filtro ético, pode gerar:

  • Constrangimento ao expositor;
  • Exposição de fragilidades do sistema ou da equipe;
  • Redução da complexidade da experiência à instrução técnica.

 

É necessário, portanto, um crivo ético na curadoria dos conteúdos, algo que IA ainda não é capaz de realizar autonomamente.

 

Transparência na atuação da IA

Finalmente, os sistemas de IA que organizam, classificam ou interagem com o conteúdo experiencial devem ser transparentes em seus critérios e limitações. Não é aceitável que um chatbot interno, treinado com base em experiência dos colaboradores, opere sem que se saiba:

  • Quem contribuiu com os dados;
  • Como foi feita a curadoria;
  • Com que margem de erro atua.

 

A IA precisa ser compreendida como ferramenta a serviço da experiência, e não substituta da prática vivida.

 

 

3.4 A ética como condição de legitimidade e sustentabilidade

A sustentabilidade do modelo aqui proposto não depende apenas de sua eficiência técnica ou de sua capacidade de reduzir custos. Ela depende de sua legitimidade simbólica, cultural e política dentro da organização. Isso significa:

  • Valorizar a experiência como um bem comum, não como dado explorável.
  • Tratar o colaborador como sujeito de saber, não como fonte de extração.
  • Garantir que as tecnologias atuem como extensões da inteligência humana, e não como dispositivos de controle, avaliação ou vigilância.

 

Somente assim o ciclo da experiência pode se manter vivo, fértil e retroalimentado — sem se esgotar na formalização mecânica ou se perverter na automação descontextualizada.

 

 

Recomendações práticas para uma adoção juridicamente segura e eticamente sólida

Para que a formalização da experiência e sua integração com sistemas de inteligência artificial não gerem litígios futuros nem minem a confiança interna, recomenda-se que as organizações adotem um conjunto mínimo de boas práticas jurídicas e institucionais, tais como:

 

  • Obter consentimento formal, livre e informado de todo colaborador cuja experiência for registrada, especialmente se o conteúdo for reutilizado para fins formativos, comerciais ou automatizados. O termo de consentimento deve especificar: finalidade do uso, prazo de guarda, possibilidade de reutilização e direito à revogação.
  • Reconhecer e valorizar a autoria, incluindo nome e função do colaborador nos materiais publicados (exceto quando houver desejo expresso de anonimato). Em contextos onde a produção de conteúdo é frequente, pode-se considerar critérios meritocráticos e simbólicos vinculados a reconhecimento interno, progressão na carreira ou participação em resultados.
  • Garantir que a participação na produção de conteúdo experiencial não seja compulsória, evitando enquadramentos que possam configurar desvio de função, exposição forçada ou sobrecarga adicional de trabalho. A criação de conteúdos deve ser voluntária, incentivada por meio de canais internos e alinhada ao tempo disponível do colaborador.
  • Estabelecer políticas claras de uso da imagem e da voz, observando a legislação de proteção de dados (como a LGPD no Brasil) e direitos de personalidade. Isso vale também para conteúdos utilizados por IA generativa, que pode replicar estilo, voz ou expressão de uma pessoa sem que ela esteja presente.
  • Incluir a área jurídica e o setor de compliance na elaboração de políticas de conhecimento. As práticas de gestão da experiência devem estar alinhadas com os princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana, valorização do trabalho e proteção da identidade individual.
  • Criar um código ético de uso da IA no âmbito organizacional, que regule não apenas aspectos técnicos, mas também simbólicos e subjetivos: o que pode ser automatizado, o que deve permanecer como relação humana, e como garantir que o conhecimento compartilhado seja tratado como um bem coletivo e não como propriedade explorável.

 

Ao seguir essas diretrizes, a organização protege-se de disputas jurídicas, evita práticas predatórias de extração de saber e, sobretudo, constrói um ambiente sustentável de inteligência colaborativa, no qual o conhecimento é partilhado com segurança, propósito e justiça.

 

 

4.0 Uma nova ecologia do saber nas organizações

 

Conhecimento como infraestrutura viva e estratégica.

 

O que este artigo procurou demonstrar é que a experiência humana, quando transformada com método, ética e tecnologia, pode se tornar o eixo estruturante da inteligência organizacional. Não basta acumular dados, formalizar manuais ou oferecer cursos: é necessário extrair o saber que circula no cotidiano do trabalho, registrá-lo com rigor e sensibilidade, e ativá-lo por meio de tecnologias como a inteligência artificial, de forma situada, crítica e ética.

A prática precede a norma. O gesto precede a teoria. E é na escuta daquilo que os profissionais já fazem bem, mesmo que não saibam explicar, que reside a chave para um novo modelo de aprendizado organizacional, baseado não na repetição de conteúdos genéricos, mas na valorização e amplificação da experiência local.

Com base nessa visão, não se trata apenas de implementar uma nova tecnologia ou processo, mas sim de fundar uma nova ecologia do saber, na qual o conhecimento:

o   É produzido no fluxo do trabalho real;

o   É legitimado como capital organizacional;

o   É compartilhado com apoio da IA;

o   É protegido por regras éticas claras;

o   E é constantemente reaplicado, validado e transformado.

 

Para que esse modelo seja sustentável, não basta contar com a boa vontade de áreas isoladas ou com iniciativas pontuais como programas internos de gravação de vídeos. É necessário institucionalizar o ciclo da experiência e sua gestão, integrando-o à estratégia da empresa, à cultura da aprendizagem e aos fluxos operacionais do negócio.

 

4.1 A proposta do Knowledge Center Office (KCO)

Nesse sentido, propomos que as organizações interessadas em amadurecer esse modelo criem um núcleo formal, transversal e estratégico dedicado à gestão da experiência explícita estruturada, que aqui chamamos de Knowledge Center Office (KCO).

 

Esse núcleo deve ser responsável por:

  • Estabelecer a política de captação, curadoria, validação e atualização da experiência organizacional;
  • Definir as linhas de prioridade temática, de acordo com os desafios estratégicos da empresa;
  • Apoiar colaboradores na produção e refinamento de conteúdos, sejam vídeos, relatos, fluxos ou resoluções de casos;
  • Integrar-se às áreas de tecnologia, T\&D, compliance e estratégia para garantir aplicabilidade, legalidade e impacto prático;
  • Gerenciar os sistemas de IA que interagem, aprendem e se alimentam da experiência acumulada.

Este KCO não é um repositório passivo de arquivos, mas sim um laboratório dinâmico de inteligência aplicada, atuando como ponte entre o saber vivo das pessoas e os sistemas formais da organização.

 

4.2 Information Leverage Points: onde o conhecimento faz diferença

Para garantir que a atuação do KCO seja estratégica, é fundamental que ele atue com base em priorização inteligente. É aqui que entra a contribuição de Thomas Davenport, que propõe o conceito de Information Leverage Points (ILPs) — ou seja, pontos críticos onde a informação certa, no momento certo, tem o maior impacto possível na performance organizacional (DAVENPORT; PRUSAK, 1998).

 

Segundo Davenport, os ILPs podem ser identificados em diferentes níveis:

  • Pontos de decisão sensíveis, onde a escolha depende da qualidade da informação (ex: resolução de conflitos com clientes, alocação de recursos, ajustes operacionais em tempo real);
  • Processos de alto custo de erro, nos quais a experiência anterior ajuda a evitar falhas (ex: onboarding de novos líderes, manutenção preventiva, gestão de crises);
  • Fluxos com alta rotatividade de pessoal, nos quais a perda de saber é recorrente (ex: centrais de atendimento, times de vendas, filiais remotas);
  • Áreas com alto impacto simbólico, onde a cultura e a linguagem interna fazem diferença (ex: comunicação institucional, diversidade, experiência do cliente).

O papel do KCO, portanto, será o de identificar os ILPs relevantes para a realidade da organização e priorizar, nesses pontos, a estruturação da experiência explícita, garantindo que os esforços de formalização, curadoria e automatização não se dispersem, mas atuem onde realmente transformam resultado em inteligência.

 

 

4.3 Caminhos futuros: do saber vivido ao saber partilhado com propósito

Ao final deste percurso, é possível afirmar que a transformação da experiência em conhecimento estruturado não é apenas uma resposta às exigências do século XXI — é também uma forma ética de honrar o que se sabe, de proteger o que se vive e de projetar o que se deseja construir.

Empresas que cultivam esse ciclo — por meio de programas como o Instrutubers, da Vivo, ou pela criação de um KCO com visão crítica — estão tecendo uma nova ecologia do saber, na qual a inteligência humana e a inteligência artificial não competem, mas colaboram.

Trata-se de substituir a lógica da obsolescência pela lógica da memória ativa;

De trocar o esquecimento organizacional pela construção coletiva de sentido;

De transformar o capital humano não em dado explorável, mas em fonte viva de conhecimento compartilhado.

 

“Aqueles que souberem escutar a experiência, saberão transformar o futuro.

 

 

Giuseppe Mosello.

 

 

Referências Bibliográficas

 

BROWN, T. et al. *Language models are few-shot learners*. In: NEURIPS 2020. Proceedings \[...], 2020. Disponível em: [https://arxiv.org/abs/2005.14165](https://arxiv.org/abs/2005.14165). Acesso em: 20 jul. 2025.

 

CHALMERS, D.; MACGREGOR, S. P. *Embedding generative AI in organisational knowledge systems: challenges and design principles*. *Journal of Business Research*, v. 162, 2023. Disponível em: [https://doi.org/10.1016/j.jbusres.2023.113999](https://doi.org/10.1016/j.jbusres.2023.113999). Acesso em: 20 jul. 2025.

 

DAVENPORT, T. H.; PRUSAK, L. *Conhecimento empresarial: como as organizações gerenciam o seu capital intelectual*. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

 

DEVLIN, J. et al. *BERT: Pre-training of deep bidirectional transformers for language understanding*. *arXiv preprint*, arXiv:1810.04805, 2019. Disponível em: [https://arxiv.org/abs/1810.04805](https://arxiv.org/abs/1810.04805). Acesso em: 20 jul. 2025.

 

FLORIDI, L. *A ética da informação*. São Paulo: Unesp, 2019.

 

MANNING, C. D.; RAGHAVAN, P.; SCHÜTZE, H. *Introduction to information retrieval*. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

 

NONAKA, I.; TAKEUCHI, H. *Criação de conhecimento na empresa: como as empresas japonesas geram a dinâmica da inovação*. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

 

OPENAI. Whisper: Speech recognition model. OpenAI, 2023. Disponível em: [https://openai.com/research/whisper](https://openai.com/research/whisper). Acesso em: 20 jul. 2025.

 

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TOUKI, H. et al. *LLaMA: Open and efficient foundation language models*. Meta AI, 2023. Disponível em: [https://ai.meta.com/llama](https://ai.meta.com/llama). Acesso em: 20 jul. 2025.

 

VASWANI, A. et al. *Attention is all you need*. In: NEURIPS 2017. Proceedings \[...], 2017. Disponível em: [https://arxiv.org/abs/1706.03762](https://arxiv.org/abs/1706.03762). Acesso em: 20 jul. 2025.

 


[1] Corpora (plural de corpus) são grandes conjuntos de textos organizados e utilizados como base para análise linguística ou treinamento de modelos de linguagem. Em inteligência artificial, corpora servem como fonte de dados para que algoritmos aprendam padrões estatísticos de uso da linguagem, sem que isso implique compreensão semântica ou empática no sentido humano.



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